Quatro faces do samba
Livros sobre discos clássicos de Dona Ivone Lara, Jorge Ben Jor, Tom Zé e Clara Nunes se debruçam sobre visões pessoais do gênero mais popular da música brasileira
Samba, segundo o dicionário Houaiss (2009), é uma “dança de roda semelhante ao batuque, com dançarinos solistas e eventual presença da umbigada, difundida em todo o Brasil com variantes coreográficas e de acompanhamento instrumental”. Mas a verdade é que o samba não cabe em um verbete. Só a coleção O Livro do Disco, da Editora Cobogó, que conta as incríveis histórias por trás de grandes álbuns da música brasileira e internacional, traz quatro visões muito particulares – ou mesmo complementares – do gênero, todas elas através das criações de artistas geniais: Dona Ivone Lara, Tom Zé, Jorge Ben Jor e Clara Nunes.
Uma das raras mulheres a ganhar destaque e respeito no mundo do samba, Dona Ivone Lara (1922-2018) iniciou sua carreira na década de 1960 como passista e compositora da escola de samba Império Serrano. Logo em suas primeiras gravações – como o disco Samba minha verdade, minha raiz, de 1974 – sua voz e suas melodias chamaram atenção. Mas em 1981 o LP Sorriso negro representou uma virada em sua carreira: enfileirando canções que versavam sobre orgulho negro e empoderamento feminino em plena ditatura militar, era uma obra muito à frente de seu tempo.
No livro Sorriso Negro a jornalista e professora no Departamento de Estudos Latino-Americanos e Latinos no Lehman College (City University of New York) Mila Burns usa o termo "resistência pela existência" para classificar o trabalho da artista. "Dona Ivone Lara desenvolveu uma estratégia própria para superar os desafios de uma mulher negra no Brasil do século XX, que serviu de exemplo para as gerações seguintes. Sua forte presença de palco, suas famosas contramelodias e sua biografia incorporam, de várias formas, a resiliência das mulheres negras brasileiras diante de desafios múltiplos e intensos", escreve a autora.
No mesmo ano, mais de uma década depois de sua estreia com Samba esquema novo, em que criou o subgênero que ficou conhecido como “samba rock”, Jorge Ben (na época ainda sem o “Jor”) lançou seu 11º disco. Mas a inventividade do músico, cantor e compositor seguia à toda em A tábua de esmeralda, mesclando com cada vez mais propriedade o samba com elementos do pop, do soul, do funk, da bossa nova e de ritmos africanos – uma liberdade sonora sem igual na história da música.
A tábua de esmeralda, o livro, apresenta uma série de ensaios nos quais o pesquisador de crítico musical Paulo da Costa e Silva analisa as canções desse que acabou se tornando o disco mais famoso de Jorge Ben Jor e uma das gravações mais cultuadas da música mundial, abordando questões como alquimia (tema central no álbum) e negritude para mostrar como a trajetória de seu criador se conecta às novas e diversas sonoridades por ele produzidas.
Naquela década, a música brasileira fervilhava. Tom Zé, que havia despontado anos antes em meio ao movimento tropicalista, foi convocado para tocar “A felicidade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em um programa de televisão, acabando por modificar o compasso original da canção – de seis por oito para quatro por quatro. Surgia aí o embrião de Estudando o samba, que, desconstruindo e reconstruindo o ritmo mais popular da música brasileira, foi ignorado por crítica e público na época de seu lançamento.
A partir dos anos 1980, no entanto, o álbum foi redescoberto, inicialmente no exterior (ganhou um relançamento pelo selo de David Byrne, nos EUA), até ser amplamente aclamado como um dos maiores e mais originais e influentes discos brasileiros de todos os tempos. No livro Estudando o samba, o professor de filosofia, músico, crítico de cinema e de música Bernardo Oliveira busca desvendar o mistério que levou essa obra-prima a ficar esquecida por tanto tempo.
Por fim, Giovanna Dealtry, professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), escreve sobre um dos mais marcantes álbuns de uma das mais populares e marcantes vozes do samba: o disco Guerreira, de Clara Nunes, que chegou às lojas em 1978.
O LP, que trazia a faixa-título, grande sucesso nas rádios, e canções compostas por sambistas da Portela, como Aniceto da Portela (“Quem me ouvir cantar”) e Candeia e Casquinha (“Outro recado”), além do mangueirense Nelson Cavaquinho (“O bem e o mal”), reúne os principais elementos da arte de Clara Nunes – da espiritualidade à força inigualável das interpretações. A análise contempla da trajetória da artista, que começou sua carreira como cantora de boleros, à gênese do álbum, passando por sua importância na história da música nacional e sua relação com outros grandes nomes da MPB.
Samba é tudo isso: Ivone, Tom, Jorge, Clara – e muito, muito mais.