No livro Dalton Paula: O sequestrador de almas, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz lembra de quando encomendou o quadro de Lima Barreto ao artista Dalton Paula e comenta aspectos da obra em relação à vida do escritor. Confira o trecho destacado do livro.
"O artista começou a série [Retratos Silenciados] em 2014, e conviveu, desde então, com os fantasmas registrados nos seus retratos. Com o tempo, ele passaria a dar imagem a protagonistas da história brasileira nunca ou pouco representados: pessoas negras em geral invisibilizadas por narrativas por demais coloniais e europeias. E foi em torno dos retratos que Dalton e eu nos encontramos, mais uma vez. Em 2017, eu estava para terminar uma biografia sobre Lima Barreto, escritor que viveu entre o final do Império e o início da Primeira República.
[...] Decidi tomar coragem e chamar Dalton para criar a imagem de Lima que, até então, só possuía retratos mais embranquecidos — como funcionário público — ou fotos de quando fora internado no hospício do Rio de Janeiro, em 1914 e 1918, e dizia estar “sequestrado”. Esses eram retratos, pois, com os quais o literato não se reconhecia, e que não gostaria de se ver representado. Era importante criar, assim, uma outra imagem mais próxima do escritor. Um retrato afetivo e identificado — e foi o que Dalton fez.
O traço foi saindo cada vez mais seguro, o cabelo bem definido, a roupa desalinhada, a expressão marcante. O processo criativo era claro; Dalton foi, à sua maneira, sequestrando a alma de Lima. Pesquisador nato, o artista comprou e leu todos os livros do escritor. Adquiriu também exemplares da coleção editada pela Brasiliense, idealizada na década de 1950 pelo biógrafo de Lima Barreto: Francisco de Assis Barbosa. Me pediu, também, que contasse relatos das testemunhas de época; dos amigos e conhecidos que conviveram com o escritor. Foi assim adentrando as entranhas do personagem, “vestindo os sapatos do morto”, como define Evaldo Cabral de Mello, acerca do ofício do historiador.
O resultado não poderia ser mais potente. Dalton viu as poucas fotos existentes do escritor e dialogou com elas, informando-se especialmente nos estudos que fizera para a série Retrato silenciado. Em lugar do processo de branqueamento ou mesmo de sua exotização, presente em fotos de 1910 e 1920, aqui são destacados, propositadamente, estereótipos visuais e sociais que marcaram as populações afrodescendentes no Brasil e no exterior. O retrato saiu assim, digno e imponente, com Lima Barreto visto de maneira altiva; como um intérprete do Brasil, com a lapela aberta, a gravata afrouxada, o olhar atento — desconfiado —, o excesso de tinta para destacar o cabelo encaracolado, a coloração da pele “azeitona”, conforme a autodefinição do escritor, e a testa expressiva, carregando marcas do tempo que para ele passou rápido.
Dalton também introduziu outra de suas marcas: os fundos de tela inspirados nas fotopinturas. O verde oliva que lembra as plantas, as raízes que trazem a cura simbólica; os tons terrosos da terra onde o artista vive, e, também, o lugar do segredo de tantos saberes ancestrais.
Mas há um imenso detalhe nessa obra. Até então os personagens do artista mantinham seus olhos fechados. Estavam como que incorporados. Já o escritor não podia aparecer com os olhos fechados pois passaria uma impressão de uma pessoa vencida ou apenas vitimada. Lima Barreto foi uma vítima — uma vítima do racismo sistêmico vigente no Brasil. Entretanto, ao mesmo tempo foi uma pessoa com projetos, e lutou para realizá-los a vida toda. Por isso, essa foi a primeira vez que um protagonista retratado por Dalton abriu os olhos. E a partir de então, todos eles e elas abriram.
Coerente com a sua própria obra, e em diálogo com a biografia de Lima, Dalton pintou o retrato do escritor por sobre a capa de um exemplar encadernado da coleção criada por Francisco de Assis Barbosa. Até hoje, ao ler a biografia que escrevi, sou assolada pelos fantasmas de Lima e de Dalton. A pintura causou-me tal impacto que não consigo mais pensar num retrato do escritor diferente desse. Essa é, sem dúvida, uma imagem pela qual Lima Barreto gostaria de ser reconhecido."
* Trecho de Dalton Paula: O sequestrador de almas