14/05/2022
Nos agitados meses que antecederam e sucederam o Golpe Militar de 1964, acontecia no Rio de Janeiro uma revolução – aí, sim, verdadeira – musical. Guiada pela intuição e pelo faro de uma Nara Leão estreante e aparentando ainda menos idade do que os 22 anos que de fato tinha, a tal revolução se concretizou em um disco em que tudo era novo – e com cada uma das faixas apontando para algo que se consolidaria na música brasileira nos anos seguintes.
Em Nara, a “musa” rompia com a bossa nova para dar voz ao samba e à canção de protesto, tirando do gueto compositores como Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola. Essa revolução feita com modos suaves, lirismo e belas melodias é narrada em Nara – 1964, da coleção O Livro do Disco, pelo jornalista e pesquisador Hugo Sukman.
Nesta entrevista, Sukman fala por que escolheu abordar o disco e explica por que Nara Leão foi uma artista visionária.
Por que, dentre toda a biografia da Nara Leão, repleta de clássicos, você escolheu o primeiro disco, de 1964, como o tema do livro?
Quando a Cobogó me convidou para fazer o livro sobre a Nara Leão eu tinha a liberdade de escrever sobre qualquer disco. Então, voltando de carro de São Paulo para o Rio, ouvi todos os discos da Nara, do início ao fim. Aproveitei muito bem essa longa viagem. E quantos discos maravilhosos tem a Nara! Ela fazia discos muitos bons, conceituais, muito interessantes. Só que nenhum deles tem a dimensão histórica desse primeiro. E era isso que mais me interessava: um disco maior do que o próprio disco, através do qual eu pudesse contar uma história da música brasileira. Porque esse disco é um ponto de virada, tem uma revolução ali. Nara não fez a revolução, seria apressado dizer isso, mas ela foi o epicentro de uma revolução da qual participou com o Cartola, o Elton Medeiros, o Edu Lobo, o Baden Powell, o Vinicius de Moraes. Eles fizeram uma revolução na música brasileira, representada por aquele disco. Então, ouvindo de novo, tive certeza da grandiosidade desse LP. Era mais do que eu imaginava. É uma revolução do mesmo tamanho que foi João Gilberto alguns anos antes, do mesmo tamanho que foi Noel Rosa no início dos anos 1930. Foi um momento de virada na história da música brasileira. E por isso escolhi esse disco para ser o tema do livro.
Podemos dizer que esse é um disco subestimado?
É totalmente subestimado. As pessoas falam muito mais do Opinião de Nara, que, se fosse um filme, seria um remake. É igual ao primeiro, com outras músicas, claro, mas segue o mesmo roteiro, digamos assim. Então o disco de vanguarda é o primeiro. Que é lembrado, sim, existe toda uma mística em torno do disco, mas não é valorizado como deveria, as pessoas não ouvem esse disco da mesma forma que ouvem os outros. E por isso também me interessou jogar uma luz sobre ele. Acho que a Nara descobriu um caminho, um caminho que seria traçado pela música brasileira dali em diante. Inclusive por ela mesma. E isso aconteceu nesse primeiro disco, não foi no segundo, não foi no terceiro. Nara estava muito à frente. Esse disco veio antes de tudo. Ela foi a primeira a gravar Moacir Santos, que seria uma marca da música brasileira daquele momento. Nara foi também a primeira a juntar de maneira organizada os afro-sambas, que ainda nem tinham esse nome. Foi quem lançou o Edu Lobo e o Elton Medeiros, foi quem promoveu o retorno do Cartola, foi quem chamou atenção para o Nelson Cavaquinho, gravando “Diz que fui por aí”, um samba de terreiro, coisa que ninguém cantava. Ela foi pioneira. Veio antes do Elizeth sobe o morro, antes do Paulinho da Viola. Tudo aquilo que aconteceria na música brasileira a Nara adivinha nesse disco.
Com esse disco, Nara rompe com a bossa nova ou reinventa a bossa nova?
O disco da Nara de 1964 realiza um antigo desejo da música brasileira, que remonta à peça Orfeu da Conceição, que é criar uma nova bossa a partir da bossa carioca que é o samba. Isso é um processo que começa lá com o Vinicius olhando para a favela e buscando essa nova expressão para o samba. E isso vai desembocar nesse disco da Nara, que é uma realização da bossa nova, no sentido mais amplo da palavra. Não no da bossa nova ortodoxa, de que Nara, com toda razão, queria se livrar, porque tinha virado uma moda, já estava consagrada mundialmente. No dia que ela lança o disco, diz “eu quis fazer um negócio diferente”. E o que ela faz é explodir a bossa nova em muitas possibilidades. Ela canta Moacir Santos, os sambas do Cartola e do Zé Keti, as canções semieruditas do Edu Lobo, as músicas do Carlos Lyra. É ela que lança no Brasil a ideia de música protesto. Aliás, uma coisa que eu também acho que a Nara faz é atualizar a música brasileira para o tempo dela.
O livro é cheio de personagens e histórias que se encontram na história da Nara e do disco de 1964. Como você chegou a esse formato narrativo?
Eu diria que o livro tem uma narrativa circular. É uma história que remonta a 1953, quando o Nelson Pereira dos Santos veio ao Rio fazer o filme Rio 40 graus e conheceu o Zé Keti, sambista do morro, que então começa a fazer música para os cineastas intelectuais do Cinema Novo. O mesmo Zé Ketti retorna quanto o Vianinha, Oduvaldo Vianna Filho, resolve trazer o samba do morro para o CPC, o Centro Popular de Cultura da União Nacional do Estudantes. É aí que o Carlos Lyra conhece as músicas do Zé Keti e mostra para a Nara. Então o Zé Keti vai aparecendo durante o livro, como um dos personagens, e eu vou contando essa história como se fosse um romance. O Vinicius, por exemplo, aprece de várias formas. É o cara que concebeu o Orfeu do Carnaval e depois está ali na bossa nova. Também escreve Pobre menina rica, que vai ser o primeiro trabalho profissional da Nara. E depois reaparece fazendo a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, que abre o disco da Nara, com o Carlos Lyra. Outra coisa é que as famosas reuniões da bossa nova na casa da Nara começaram ali, no início de 1957, e coincidiram com a redescoberta, pelo Sérgio Porto, do Cartola, que estava meio desaparecido do meio artístico. Mas quem vai realmente trazer o Cartola de volta é a Nara. Então é assim que a narrativa vai sendo construída. Sem nenhuma pretensão literária, eu pensei construir uma estrutura semelhante à de um romance, em que histórias paralelas vão se encontrando com a história principal, que é a da Nara. Ela é o epicentro de tudo isso, ela junta todas essas pontas, a música e a política, a redescoberta do samba.
Quem foi Nara Leão para você?
Nara foi uma mulher muito talentosa que conseguiu fazer da música uma extensão da vida. Ela nunca quis usar figurino, nunca quis usar maquiagem, se vestia no palco como se vestia no dia a dia, cantava em público como cantava em casa. Cantava o que queria cantar e dizia o queria dizer, encarnando seu tempo de uma maneira muito natural, sem estetização. E assim ela realizou a utopia da bossa nova, que é uma música feita por pessoas comuns. Nara, a artista, era a mesma que Nara, a pessoa, no palco e no disco. E por isso vieram todos os conflitos dela com o meio artístico, durante a vida toda, porque ela nunca se enquadrou. Ela nunca quis ser artista, nunca quis ser a Elis Regina, só para citar uma rival dela. Ela nunca faria uma coreografia balançando os braços, usando enchimento no cabelo. Era mesmo uma extensão da vida. Essa é a característica da Nara, mais do que qualquer outro artista época. Mais do que a Odete Lara, que, como o Aloísio escreve na quarta capa do livro, cantava como uma atriz deveria cantar, mais do que o Vinícius, que cantava como um poeta deveria cantar. Aí eu estendo isso: Nara Leão cantava como uma moça de Copacabana em 1964 deveria cantar. Algo que era impensável na época. Nara é a artista que mais realiza essa utopia da bossa nova.