1º Movimento
NOVOS QUINTAIS
(Vidal Assis)
A mulher que chegou do Haiti
Trouxe flor e saudades de lá
E com as mãos construiu por aqui
Seu lugar, seu lugar, seu lugar
A cubana fugiu do revés
Com nobreza, paixão e pesar
E fincou nessa terra seus pés
Sem chorar, sem chorar, sem chorar
Obrigadas a deixar pra trás
Suas mães, suas avós, seus irmãos
Pra apostar num futuro de paz
Outro mar, outro cais, outras mãos
Mil ideais
Novo ar, nova cor, novos grãos
Novos quintais...
Uma moça da Síria cruzou
Bombardeios pra se libertar
E assim, sem perceber, me inspirou
A lutar, a lutar, a lutar
Certa vez, a judia cantou
E me fez, de prazer, levitar
Dei-lhe um beijo e senti que mudou
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Nós também somos continentais
E há muitas fronteiras em nós
E não há de ser tarde jamais
Pra mudar, pra vencer, pra ser voz
Ouça os sinais
Mesmo aqui, mesmo lá, mesmo a sós
Sonhos iguais...
2º Movimento
EU CRIO O MAR
(Vidal Assis, sobre texto de Grace Passô)
É no meu sonho
Que ele nada, ele brinca
Que ele põe os pés pra cima
E engole água enquanto ri
Tão risonho
Ele é ostra ou baleia
Polvo, peixe ou sereia
Um vai e vem que é bom sentir
É no meu sonho
Que ele é cavalo-marinho
Mas é sempre meu marido
Seja homem ou mulher
Não me envergonho
Gozo de cara lavada
Doce mar de água salgada
Bem do jeito que eu quiser
E na nossa viagem
Se eu olho pra margem
Vejo longos braços a nos acenar
Mas nada nos alcança
Pois a nossa dança
É uma labareda ardendo em alto-mar
De tanto eu me encharco
Homens criam barcos
Pra talvez nas minhas águas navegar
E eu crio tanta água
Que ao restar mais nada
Eu, de tão feliz, sou obrigada a despertar...
3º Movimento
DONA DO VENTRE
(Vidal Assis)
Reflete bem sobre esse filho
No seu ventre de mãe solo
Vozes que te julgam não irão te proteger
Sem garantias nem auxílio
Com outros filhos no seu colo
Só de ler seus olhos, já entendo o seu sofrer
Tira
Essa culpa é uma mentira
Que hoje pesa os ombros seus
Sempre em nome de Deus
Rainha
Cê não fez filho sozinha
Mas eu sei quem é que vai
Fazer papel de mãe e pai
Olha
Que é sua essa escolha
Te acompanho se quiser
Você é a dona do ventre, mulher.
4º Movimento
CONCHAS
(Vidal Assis)
Todo segredo é um oceano ao luar
Água e sal sempre guardados no fundo do olhar
E o tempo ensina sobre em quem confiar:
Somente algumas conchas sabem guardar o mar
Em certas vezes eu cheguei a dizer
Que matei, era questão de viver ou morrer
Foi por amor, não hei de me arrepender
E ouso a admitir que o que eu senti foi prazer
Em outras, contei que fui violentada
E que uma cadela latia, latia, latia
Minha dor, no entanto, foi ignorada
Eu fui coadjuvante na minha agonia
Eu pensei
Repensei
E calei.
5º Movimento
SETE PALMOS
(Vidal Assis)
Desde cedo esse mundo me mostrou
Que a mulher sempre teve que aturar
Homem broxa, violento, traidor
E ainda era obrigada a casar
Com o tempo o incômodo aumentou
Tinha algo de estranho pelo ar
Um pedaço que o livro não contou
Mas que eu fui buscar, mas que eu fui buscar
Fui aos poucos quebrando o tabu
De calar, de sofrer, de acreditar
Lendo Angela Davis, Pagu
Chimamanda e Simone de Beauvoir
Certa vez, fui tomada pelo amor
Nem deu tempo de usar minha razão
No começo era só bombom e flor
Riso frouxo, ternura e tesão
Casamento, crianças, cobertor
E eis que o enredo virou decepção
Ele logo por outra se engraçou
Quanta escrotidão, quanta escrotidão
Inventaram que eu quero acabar
Com a mulher que hoje tem seu coração
Mas é ele que eu quero botar
Sete palmos debaixo desse chão!
6º Movimento
VALSA DA REVOLUÇÃO
(Vidal Assis)
Onde é que estão vocês
Quando eu me sinto só?
A traição lanhou a minha tez
E na garganta ainda guardo um nó
Dizer que é cidadã
É fala vã
Engano
Se o meu pesar
Não pode entrar
Na sala de quem pensa o plano
De fazer do armagedom
Um mundo bom, um lar
Em que a empatia seja o nosso dom
Pra nunca mais
Pensarmos ser rivais
Pois foi o homem que feriu
Depois sorriu
Do nosso mal
Mas feito um bumerangue
O que era choro e sangue
Volta, enfim, punhal
Tenho o sangue do opressor
Mas mulheres de qual terra for
Têm medos em comum
Moldados um a um
E ser mulher nos torna irmãs
Mãe, índigena, retinta, trans
Falando sobre nós
Mostrando a nossa voz
E o tempo de calar
Não vai voltar
Mas indago com avidez
(Respondam sim ou não)
Se na revolução
A minha dor tem vez.
7º Movimento
TEM VOLTA MAIS NÃO
(Vidal Assis)
Fala de amor
Diz que é teu pai
Mas não criou
Nem nunca vai
Mas o mundo já perdoou
Afinal ele é homem
Quando ele vem
Sempre na mão
Traz um presen-
te e uma canção
Monta a cena que mais convém
Sempre pedindo compreensão
Mas seu triste olhar não convence não
Olha pra mim
Faz um favor
Ele é ruim
Feito um tumor
É de um grupo que não tem fim:
Os que fazem mas somem
Se existe alguém
Que traz a dor
Sai desse trem
Que nunca andou
Que esse pai não merece nem
Ser chamado de genitor
Ausência é o sêmen que te gerou
Que essa falta incandesça o rastilho
Da tua explosão
Que esse canto dispare o gatilho
Da insubmissão
Que a força das Deusas se acenda
No teu coração
E que o mundo enfim compreenda:
Tem volta mais não.
8º Movimento
TEMPLO
(Vidal Assis)
O amor que eu conservo em mim
É um templo que tem jardim
Terminando no mar sem fim
Do meu peito
De onde jorram o leite e a dor
Que alimentam a nova flor
De um tempo mais promissor
E eu me ajeito
O meu colo tem mil lençóis
Há cantigas na minha voz
E água fresca pra todas nós
No entanto, há um poço atroz
Onde há lágrimas de exaustão
Julgamento e condenação
E ninguém pra me dar a mão
Ou respeito
Sou humana, o que querem mais?
Que eu perdoe e que volte atrás?
Ou que busque outro satanás?
Não aceito!
Vejam dentro do meu olhar
Tudo está fora do lugar
E eu assumo que, além de amar,
Sou capaz de morrer ou matar...
9º Movimento
GESTO MAIOR
(Vidal Assis)
Não, vocês não vão
Passar o que eu passei
Cada humilhação
Cada falsa lei
Cada estupro
Cada assassinato
Cada culpa
Cada exposição
Cada sonho
Já despedaçado
Cada medo
Cada traição
Não vai ser em vão
Mas tenho que ser forte
E crer que há outra nação
No litoral da morte
Por respeito
Por dignidade
Por justiça
Por quem nos precedeu
Por direito
Pela liberdade
Pela vida
Por vocês e eu
Esse é o meu maior gesto de amor
Adeus.