Urge compreender: é proibido ter memória na periferia do capital.
Há muito este debate é feito, e parecer haver um consenso entre oprimidos e opressores: memória é fundamental. À media que, por exemplo, a colonização europeia destruía, nas Américas, os espaços sagrados dos povos originários e erguia templos católicos em seu lugar, ficava evidente que o processo de dominação aliava a subordinação material à suplantação cultural. Este é um processo partilhado pela imensa maioria dos territórios devastados pelo imperialismo: gradativamente, perde-se o acesso (material e simbólico) à possibilidade de recordar, e sem a recordação de outro tempo, de outro modo de vida, de outros valores e significados, estes novos (e impostos pelos colonizadores) poderão parecer legítimos, permanentes e atemporais.
Toda luta decolonial tem um eixo de resgate à memória. Mas não apenas à memória, como também ao direito incompreensível de fabular a partir dela. Quando se erodem os elos concretos de um povo com seu passado, corroem-se também suas ligações com um futuro de esperança. Sem base no passado ou desejo emancipado de futuro, a periferia do capital está eternamente presa sobre um presente fugaz e sem profundidade. Esta é a súmula da ideologia imperialista que visa a ocultar o terror da colonização.
Museu Nacional [Todas as vozes do fogo]* permite pensar sobre estas e outras questões, sua emergência é consonante com o espírito de um tempo e a tarefa histórica de todos aqueles e aquelas comprometidos com um devir verdadeiramente améfrico ladino.
*Museu Nacional [Todas as vozes do fogo], dramaturgia de Vinicius Calderoni, parte do incêndio do Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, sede do Museu Nacional, em setembro de 2018, e da história da instituição bicentenária, para contar a História do Brasil. O livro está disponível no site da Cobogó e nas principais livrarias do país.