O Brasil tem discutido o projeto de lei 2.630, chamado de “PL das Fake News”. Criado para combater a desinformação, o texto estabelece regras para a atividade das empresas de tecnologia no país, permitindo que sejam responsabilizadas e punidas pela circulação de conteúdos criminosos em suas redes. Para enriquecer o debate, indicamos a leitura do livro Pós-Verdade e fake news – Reflexões sobre a guerra de narrativas, que reúne oito artigos e duas entrevistas sobre o tema, com organização da jornalista Mariana Barbosa.
"Ajudar a compreender o fenômeno da pós-verdade em suas dimensões política, tecnológica, filosófica, jurídica e jornalística é a proposta deste livro", descreve a organizadora na apresentação da obra. Os textos, ela completa, "são um convite a uma reflexão mais detida e, também, uma tentativa de apontar caminhos para uma atuação mais consciente nas redes".
Abre a coletânea o artigo A ponta de um iceberg de desconfiança, de Fernanda Bruno, doutora em Comunicação pela UFRJ, e Tatiana Roque, filósofa e matemática. Partindo das eleições presidenciais de 2018, no Brasil, e do crescente nacionalismo no mundo, as autoras questionam o que consideram ser uma tese simplista segundo a qual os eleitores teriam sido manipulados por fake news. "O que pode ter levado tanta gente a repassar notícias falsas, movimento aparentemente tão decisivo para a eleição de Bolsonaro? Para além do julgamento sobre a veracidade, outros fatores podem ter gerado um ambiente de credibilidade para as fake news", provocam as autoras.
"O fenômeno da pós-verdade pode ser apenas a ponta do iceberg: por baixo há um mundo em que a confiança está se dissolvendo. A confiança está sendo minada nas redes sociais, com novas crenças e novos valores que contestam o método científico e desafiam consensos há tempos estabelecidos." (Fernanda Bruno e Tatiana Roque)
Francisco Brito Cruz, doutor em Sociologia do Direito pela USP e diretor do InternetLab, assina o ensaio Fake news definem uma eleição?, no qual analisa a campanha de Jair Bolsonaro sob a ótica da intermediação de conteúdo, que, em tese, seria transformada com uma dieta de mídia cada vez mais digital" Para o sociólogo, no entanto, "a polarização política, o discurso de ódio e a disseminação de boatos nas redes sociais nublaram o céu azul da utopia de uma política sem intermediação. Mais do que isso, tais fenômenos evidenciaram que um novo tipo de
intermediação se configurou".
O jornalista Eugênio Bucci deixa explícito já no título do artigo seu objeto de análise: News não são fake – e fake news não são news. O autor discorre sobre o uso das fake news, que imitam a forma do jornalismo e, ironicamente, são usadas por governantes mundo afora – de Donald Trump e Viktor Orbán a Jair Bolsonaro – como ferramenta para manchar a credibilidade do próprio jornalismo. "O bordão dos conservadores abrutalhados não tem sentido, não tem lógica, não tem fundamento – e entender o por que é vital", escreve Bucci.
A dimensão tecnológica das fake news é o cerne do artigo de Dora Kaufman, A inteligência artificial mediando a comunicação. A economista e escritora lista tecnologias usadas por meios de comunicação para dissecar o fenômeno da automação da comunicação e, também, discorre sobre a história e o avanço dos algoritmos e da inteligência artificial no âmbito da comunicação. Para Kaufman, "a principal crítica a esses sistemas inteligentes é a propensão para a formação de ‘bolhas’, ou ‘câmaras de eco’: promovem a homogeneização das relações sociais, mantendo as pessoas em círculos sociais fechados, formados por aqueles que pensam igual."
No artigo Desconstruindo as fake news: o trabalho das agências de fact checking, o jornalista Gilberto Scofield Jr. mira no trabalho de seus pares que travam uma batalha para desmentir as fake news. O autor explica que "o movimento jornalístico de checagem de fatos cresce num ambiente em que imprensa perdeu a exclusividade como mediadora do debate público e, com a emergência das redes sociais, perdeu até mesmo a autoridade para definir o que é notícia".
"Vivemos tempos de instabilidade e fluidez da informação. Este é terreno fértil para a disseminação de mentiras, desinformação e exageros de todos os tipos. O desafio é entender o fenômeno não apenas pelas lentes da tecnologia que nos serve e nos deixa servos hoje, um fenômeno importantíssimo que faz uma série distópica como Black Mirror estranhamente real." (Gilberto Scofield Jr.)
Sob a perspectiva de educador, Alexandre Sayad trata da importância de formar usuários de internet que naveguem de forma consciente. Em Idade Mídia: uma Idade Média às avessas, ele apresenta exemplos de educação midiática que entende como "parte intrínseca do pensamento crítico e um elemento fundamental na atualização do currículo escolar para fazer frente aos desafios do zeitgeist e da aprendizagem dos alunos".
Como procurador do Ministério Público de São Paulo, Ronaldo Porto Macedo Jr. assina Liberdade de expressão ou dever de falar a verdade?, texto voltado para a dimensão jurídica da era da pós-verdade e das fake news. Num alerta para as ameaças à liberdade de expressão, o autor escreve: "Os recorrentes alarmes sobre os riscos que a democracia corre ao não censurar as ‘notícias falsas’ são frequentemente casos notórios de fake news ou de mal disfarçada censura."
O economista e filósofo Joel Pinheiro assina Fake news e o futuro da nossa civilização. Depois de traçar um breve arco histórico da era da informação – que, para ele, "pode com igual justiça ser chamada de era das fake news" –, ele se dedica a apontar caminhos futuros. "A educação, mais do que acúmulo de informação, tem de nos preparar para pensar criticamente e saber avaliar diferentes argumentos", propõe o autor.
Depois da série de artigos, o livro apresenta, por fim, duas entrevistas exclusivas, conduzidas pela organizadora Mariana Barbosa: a primeira, com o americano Peter Warren Singer, especialista em Defesa; a segunda, com a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Autor do aclamado LikeWar: the weaponization of social media (2018, HMH), Singer defende que, por meio de esforço coletivo, é possível frear a disseminação das fake news. Patrícia Campos Mello, por sua vez, relembra o episódio em que foi, ela própria, vítima de campanha difamatória nas redes sociais após denunciar o compartilhamento em massa de fake news pela campanha de Jair Bolsonaro.